sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Por Cleuzete Chagas de Freitas

A CONFISSÃO DO ANJO
A TARDE 2000

      Meu objetivo ao entrar, mais uma vez, na Catedral Basílica, no Terreiro de Jesus, naquela manhã de sábado, era rever um cenário original de riqueza, beleza e muitas curiosidades, para reinterpretar as formas de uma arte secular.
      Naquela hora, a igreja estava quase vazia, uns poucos turistas a transitar, e um grupo maior de garotos, que recebiam instruções para auxiliar restaurações, estava no interior, ao lado, bem junto ao confessionário. Foi aí que dei de cara com umas perninhas finas, sujas e pés descalços para fora da "caixa de madeira", onde se largara uma "menina" de aproximadamente seis anos de idade: barriga para cima, solta, parada, imóvel, bem no assento do padre, num sono tão profundo que não lhe permitia um só movimento, parecia nem respirar.
      Diante daquele quadro, detive-me longamente. De início, julguei ser uma boneca maltrapilha, jogada alí. Recusava-me acreditar que fosse humano. Cutuquei, então, uma colega com quem estava e sussurrei-lhe, ao ouvido: "Você viu ali dentro?" Ela então respondeu-me, com naturalidade: "É uma criança de rua dormindo!".
      "Naturalmente", o leitor está se perguntando: como se assustar com esse fato, se tantas crianças estão por aí, a dormir pelas calçadas, todos os dias? Aquela cena, no entanto teve para mim um significado diferente: a criança estava a um passo, e, na posição em que se encontrava, parecia estar morta; confundida com uma boneca de pano, poderia ter sido jogada naquele canto. Além do que, impressionou-me o fato de ela ter se deitado exatamente naquele lugar íntimo de uma igreja famosa e muito frequentada; estava tão perto de Deus e tão longe da humanidade! Quem sabe ali, no lugar do padre, em sonhos, ela ouvia os segredos mais íntimos dos que não lhe vêem nem lhe ouvem?
      Eu saí atônita, à procura de registrar aquela cena, não gostaria que o caso se constituísse em mais um "segredo de estado", daqueles silenciados diante da indiferença, da injustiça e da crueldade dos homens, que parecem não se indignar diante da dor e da miséria do outro. Ainda no interior da igreja, fui informada de que era proibido fotografar internamente. Também não consegui filmadora, ali. Saí muito contrariada.
      Já no Terreiro de Jesus, deparei-me com crianças magras, sujas, pés descalços, maltrapilhas, de olhos bem abertos e gestos agilíssimos.

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